terça-feira, 29 de julho de 2008

Cotas de pureza


Foi chegando no baile, desprevenido e desorientado. Vestia-se simples e elegantemente, trazia uma rosa vermelha, quase vinho presa ao bolso do terno. Uma donzela que não era mais virgem, o aguardava sem saber no canto do salão, admirando os belos lustres de cristais que refletiam uma espécie de mágica em forma de luz.

Rodou entre as centenas de pessoas, vestidos, ternos, calças de cetim, colares e brilhantes, até que alcançou o magnetismo melancólico daqueles olhos.

_ Oi.

É que os cenários mais bonitos são quebrados com as palavras mais vulgares, e foi exatamente o que aconteceu, quando sobre a visão dela desfizeram em finos feixes de luminosidade uma obscura magia.

_ Oi.

O choque de realidade esfriou os sentimentos dos dois. Parados ridiculamente um de frente pro outro se acharam tão patéticos que a única saída seria sorrir. E eis que então, por entre os dentes de uma das bocas, uma tal e singular simetria levou-a de volta prum estado meio místico, meio doce.

_Dança comigo?

Ordinária ou não, o que importa é que após a pergunta, ele estendeu a sua mão e ela pegou. E eles rodaram por entre os outros sapatos, cachos, cartolas e colares. E mesmo que o lustre de cristais não emitisse nenhuma magia disfarçada, ela encontrou no contato delicado dos dedos dele sobre a pele, um ruído agudo que indicava uma nova possibilidade.

Um olho no outro olho e o outro olho num olho. Porque é assim que se conhece alguém, mantendo as pupilas fixas nas outras pupilas. Piscar pode, ela pensava. Sorrir também, ele divagou. E quando acharam que já não havia nada que não pudessem saber sem palavras, a luz foi mudando e toda a disposição do ambiente se modificou, e observando o outro novamente sobre outro ângulo decidiram que podiam passar mais algumas canções sem falar nada.

Com os corpos exageradamente próximos_ mais próximos do que as línguas afiadas dos casais vizinhos permitiam_ eles aqueceram todo o ar em volta deles, e metidos num turbilhão escaparam pela porta lateral até a varanda, onde a lua inexistente prenunciava um fim pouco romântico_ ou ainda_ romântico a seu próprio modo.
Aproveitando que o ruído da pele dele ainda penetrava em seu corpo, ela deixou a cabeça tombar sobre o ombro e respirou a essência suave que ele usava como perfume.

_ Noite dolorosamente escura.

Ele tocou com os dedos o rosto delicado dela; a noite era escura, mas dolorosa era exagero dela.

Debruçados sobre o parapeito da varanda, tão aconchegados um ao outro, era de se esperar que em algum momento se beijassem. E foi justamente nesse momento, que alguma coisa gritou dentro dela avisando que o ruído acabou: podia enxergar a realidade, sem jamais entender o que as pupilas dele diziam.

Os lábios se roçaram, as línguas se cruzaram imersas em saliva quente. De volta a realidade, ela deixou-se levar pela noite escura. O olhar não era magnético nem melancólico_ tão denso, mas tão denso, e tão triste, mas tão triste, que ele teve medo de perguntar o porquê.

Conduzindo suas mãos pelo corpo dela, pressentiu que tudo aquilo era território hostil. Seja lá o que tivesse acontecido, ele não era mais bem vindo ali. Insistiu, desistiu. Ignorou.

Era por ser donzela sem ser virgem, ela sabia. Era porque em noites assim tão escuras, a desconfiança aumentava e belas rosas rubras podem indicar amor mas também o inconsciente. E segredos bem guardados, definitivamente, não eram boa lembrança.
Ele quis beija-la de novo. Ela permitiu, por confusão mental, inércia e piedade. E por medo principalmente. Não guardou nenhuma nota mental daquele beijo. O vomitaria um milhão de vezes, no banheiro limpo e sagrado do salão.
Pôs suas delicadas mãos sobre o peito dele. Sorriu mecanicamente e agarrou a rosa com uma vitalidade infantil. Ele era bonito. Bonito de um jeito que ela nunca soube ser. Beleza escancarada de um jeito que ela nunca poderia assumir. Guardaria a rosa como um espelho daquela lembrança. E antes que as vísceras se revirassem e acusassem aquela beleza de absurda falsidade, ela se foi.

Ajoelhada no banheiro, com o corpo desesperado, expelia gota por gota qualquer vestígio dele perdido dentro dela. Deprimida, olhando o próprio reflexo na água imunda da privada, despetalou a rosa vermelha perguntando sim ou não. Ele respondeu: talvez.

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