terça-feira, 29 de julho de 2008

Vendetta

Eu estou passando por aqui e você sabe o porquê. Pelos mesmos prédios azulados, pela calçada imunda, pelos olhos ácidos do jovem que eu tenho a certeza que um dia irá me matar. Eu me protejo com o cigarro, que é quase um totem e definitivamente é objeto sagrado. Há anos eu me protejo com o cigarro, cânceres, tumores e coágulos, tanto faz.

Vejo de novo as árvores cortadas, e fico de novo com aquele horrível gosto de morte na boca. Morango na bala de menta do baleiro da esquina; céu nublado, mais uma noite sem lua.

Cheguei até aquele lugar entre o J e o P. Busquei os velhos símbolos rasgados, despetalados com tanto amor e tanta dor, que achei que seriam para sempre. Nem sombra de mim por lá. Um cheiro enjoado de você, um cheiro enjoado de deus, de um deus macho e autoritário.

Eu estou fumando um baseado na esquina, enquanto um policial do outro lado da rua toca as doces curvas de um garoto de 12 anos. Na idade dele qualquer boca rosada e olhos inocentes fazem o pau endurecer. E na idade dele, um pau duro vale mais que um baseado de merda fumado numa noite sinistra. O garoto assustado tenta com movimentos leves se desvencilhar do corpo do policial perverso. Perdido.

Eu estou fumando enquanto o relógio da catedral do centro marca uma determinada hora. E enquanto os ponteiros dos segundos rodam, moléculas de THC se unem aos meus neurônios. Transposta.

Agora eu pretendo guiar por aquela avenida longa até o centro, indo de encontro com o relógio da catedral. E tudo isso, você sabe muito bem o porque.

Passando de novo pelo garoto que um dia vai me matar. Um dia não, uma noite. Uma rua vazia, uma faca e eu vou chorar por aqueles olhos ácidos em todos os segundos longos que antecedem a morte. Passo pelo garoto, ele olha e nada. Caindo no carro, com a guia firme vendo as tarjas da estrada brilharem e desaparecerem. A catedral.

Parada dentro do carro, olhando o céu avermelhado, no meio do centro que era na verdade um grande nada. Vazio de capim por todos os lados.

Saindo do carro, mergulho os pés em poças de lama de algumas horas atrás. Sujeira nojenta perfeitamente adequada para todo aquele deja vu. Entro na catedral pensando em como era horrível adentrar um local tão bonito com os pés enlameados. E também penso que não é adequado deixar pegadas.

Chego a torre da catedral, e é então que você entende realmente o porque. Eu vim até aqui, eu passei pelo J, pelo policial e pelo menino de olhos ácidos. Passei pela avenida e pela noite escura, tudo para lhe dizer que hoje não.

Então eu tiro a arma da cintura e deixo devagar que ela toque seu pescoço. Traga fundo o seu cigarro e deixa a fumaça flutuar no seu pulmão. Hoje não. Hoje não tem encontro as escondidas, não tem chantagem. Enquanto a bala perfura sua pele e a fumaça do cigarro segue silencioso seu caminho ate a liberdade, lembre-se da noite agradável, do dia bonito, do sono tranqüilo sob o céu limpo e iluminado. Ignora o frio e o vermelho das nuvens, nem você merece uma despedida tão sinistra.

Eu não odeio você, deveria, mas não odeio. Eu apenas queria ser livre e você estava no caminho. Muitas coisas ainda estarão. Talvez eu mate o policial perverso só pelo prazer de oferecer algo pro garoto de 12 anos. Talvez eu me case com o rapaz de olhos ácidos. Talvez eu exploda essa catedral. O que vem depois do tiro é a fumaça.

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