terça-feira, 29 de julho de 2008

Sinfonia em tempo obtuso

Que eu te procuro às vezes, por entre prédios vazios, nas ruínas. Eu te procuro por tédio, por sono, por fome e por amor. Às vezes rabisco o seu rosto com batom vermelho nos banheiros públicos. Eu amo você. Adeus.

Antes da bomba explodir, nos encontrávamos todos os dias. Durante as manhas antes do trabalho, eu parava no ponto de ônibus e fingia amarrar os cadarços. Você chegava e nós trocávamos palavras. Ois e tchaus. Nas tardes nos víamos no café, eu me sentava no balcão e você chegava logo depois. Trocávamos simplicidades e melancolias. A noite nos encontrávamos nas camas sórdidas. Trocávamos juras, promessas, amores. Mas aí veio a bomba.

Antes de você eu era casada. Tinha uma família bonita, comum, daquelas que desprezamos na adolescência e construímos na vida adulta. Mentiria se dissesse que era triste; minha vida de casada foi uma boa distração. Acabou. Eu fui embora, ele também.

Você também era casada, mas sua família não era uma distração. Agarrada em ideais e idéias políticas, vocês duas eram incríveis. E tão aguerridas e guerreiras com o resto do mundo que se tornaram agressivas consigo mesmas. Acabou e vocês foram embora.

A primeira vez que eu vi você foi num palanque. Você estava esperando a sua vez de falar e aí eu conclui que você era linda. Quando você falou, eu conclui que você era inteligente. E quando você me olhou, eu conclui que você era perfeita. Eu estava apaixonada.

Segundo você a primeira vez que você me viu foi numa aula. Eu discursava qualquer coisa sobre a maneira de ver o mundo e você estava lá por curiosidade. Eu não reparei, mas me lembro desse dia pelos seus olhos. Eu não sei o que você viu em mim mas eu sei que você me amava.

Antes do palanque e antes da universidade e antes até mesmo do meu marido, eu era uma menina. E cada dia que passava eu entendia mais e mais o que significava ser uma menina. Até que um dia eu não me reconheci mais no espelho, eu era outra. Ou quem sabe outro. Eu sei que um dia eu vi que uma saída possível era mergulhar profundamente nas minhas próprias chagas. E aí foi começo da bomba.

Antes de conhecer o meu marido eu estive em locais obscuros nos quais ninguém nunca me imaginaria. E conheci pessoas noturnas, cada uma com uma receita de revolução e de felicidade. E eu sabia que tudo era errado, mas foi impossível não embarcar numa nova onda.

Por muito tempo eu fui teoria sem prática. Até ver você naquele palanque e perceber que podia ser mais, que podia acontecer mais. Enquanto nos apaixonávamos e nossa vida seguia, eu comecei a colocar a teoria em prática. Me diverti.
Chaga por chaga, veio o dia da vingança. O dia de me encontrar, o dia de entender quem eu era, quem eu tinha me tornado. O fim.

Nos reunimos, mas eu não tive você naquele dia. Nem na noite anterior, você simplesmente desapareceu por trinta horas. Eu e o resto do grupo nos encontramos no local combinado. Cada qual tomou seu posto. Vieram as bombas.

Tínhamos planos. Tínhamos reivindicações. Tínhamos angustias. Perdemos o senso, ou éramos bons porque tínhamos perdido o senso. Foi a primeira vez que eu tive medo.
Horas depois e eu não vi você. Dias, semanas, meses e já faz um ano. Eu ainda procuro você, mas não tive coragem de olhar entre os mortos. O que eu queria mesmo era beijar você enquanto o resto do mundo ardia numa explosão.

Concreto, solidão, fotos suas e seu retrato em todas as ruínas. Alguém deve se perguntar sobre a figura de batom. Você agora é eterna e talvez algum dia você se encontre numa dessas ruínas. Talvez um dia eu acorde ao seu lado. Talvez um dia eu olhe um dos desenhos nos espelhos e veja a sua imagem. Você esta atrás de mim, e é um sonho. O que você diria, o que você diria do caos, o que você diria da fumaça. Eu amo você. Adeus de novo.

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