segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Vertigem

Porque foi sonho e foi saudade. E quando acordou sentiu a pontada no peito e a certeza de que não volta. E a água indigesta se apresenta como senhora cruel, apagando indecentemente cada vestígio do passado. Uma hora lembrou-se.

Acomodado no bar com as mãos cheirando a sangue. Sujas não estavam, tinha certeza. Era coisa da cabeça, era coisa do coração. Guardaria a visão para sempre. Noite estranha afogada no copo de conhaque.

Entre duas e três da manhã, ele sentiu uma enorme vontade de ir ao banheiro. Então, levantou-se do bar, pediu instruções a um garçom e seguiu até o banheiro. Empurrou a porta imunda e rabiscada de solidões naturais, e com o corpo recostado na parede, porque a essa altura ficar em pé era um martírio, deixou que a urina escorresse.

_ Cinqüenta e não se fala mais nisso.

_ Vale a pena?

_ Se você não gostar eu devolvo.

_ Devolve mesmo?

_ Só se você não gostar.

_ Você confia tanto assim?

_ Confio.

_ Então deve valer.

Caiu. Primeiro tudo ficou escuro, depois tudo começou a girar. Então caiu. A cabeça bateu no vaso e abriu um corte na sobrancelha. Olhou pro fundo da água amarelada e fedorenta: era o futuro. Começou a vomitar.

_ Que droga de barulho é esse?

_ Alguém.

_ Desculpa, mas não dá.

_ O que você esperava desse lugar?

_ Me devolve a grana.

_ Não. Eu devolvo se você não gostar e não se você desistir.

_ Que merda!

_ Me bate de novo e eu te mato.

Levantou. Apoiado na porta sentia o cheiro de mijo das roupas. Esse era de verdade. Saiu da cabine olhando pro chão, atitude completamente desnecessária; um bar daquela categoria jamais teria espelhos.

_ Não se preocupem comigo, eu já estou indo embora.

E na saída ele notou que estava no banheiro feminino.

De volta a mesa de antes notou que seu copo havia sido recolhido. Amaldiçoou o garçom e deixou a cabeça pousar sobe os braços. Vontade nenhuma de fazer força nenhuma.

Foi então que ele sentiu que tinha de ir embora. O carro parado do outro lado da rua, um tom de nervosismo dentro do bar. Era a policia, mas o que era melhor fazer? Fingir que a noite acabou, que se estava indo para casa, ou ficar ali, como quem não deve nada a ninguém? Dois moços brancos e um moço preto saíram de dentro do bar e os policias do outro lado da rua não fizeram nada. Ele decidiu então, fazer a mesma coisa. O corpo molenga, os olhos distantes e o cheiro denunciavam uma noite longa e embriagada. Mas só isso.

_ E então?

_ Só mais um.

_ Tem certeza?

_ Você não?

_ Não.

_ O que você acha?

_ Não sei... Intuição.

_ Quer ir até lá?

_ Deixa.

Um pé depois o outro, depois do outro o um pé. Tinha eu reaprender a andar, tinha eu reaprender quase tudo. Passou despercebido, ou quase isso. Finalmente um pouco de alivio. Ou quem sabe não.

Sentiu. A primeira pancada foi na cabeça. Caiu e com as mãos apoiadas no chão sentiu os dois chutes na barriga. Então vieram os outros chutes, um no nariz e outro no saco. Reconheceu, eram os dois moços brancos e o moço preto. Reviraram os seus bolsos em busca de alguns trocados. Acharam um 38 cano longo faltando duas balas.

_ E então?

_ Não sei.

_ Aqui?

_ Quem é ele?

_ Faz diferença?


_ Vamos embora, a policia esta a três quadras daqui.

Agora não tinha mais nada. Nem a água pacificadora, nem alguma esperança de recomeço. Faltava-lhe um dente também. E foi tocando a língua na gengiva sangrenta que ele concluiu que podia ficar deitado onde estava e esperar o sol nascer.

Naquela hora oportuna, em que os galos começam a cantar mas ainda esta bem escuro, uma pequena veio em sua direção. Ele a viu vindo de longe, com pernas magricelas e roupas vulgares. E então ele reconheceu no rosto dela a lembrança que ele tentou apagar durante toda a noite.

_ Qual é o seu problema?

Todos os problemas que um homem podia ter.

_ Nunca viu?

Daquela forma, tão nítida, não, nunca tinha visto.

A pequena seguiu. Casa, cafetão, trabalho, família, filhos, tanto fazia...

E ele concluiu que ainda havia algum tempo. Por que sim, foi sonho e foi saudade, mas foi também tão brutalmente desperto que seria vingança. E não existia o que esquecer. Sim, a visão ficaria na sua cabeça para sempre assim como o cheiro de sangue nas mãos. E nada que ele tentasse traria de volta o sentido das coisas. Mas trariam alivio, certezas e alguma dignidade.

Decidiu-se por utilizar as próprias mãos. Não havia tempo. Ainda estava bêbado, ainda estava lento, ainda estava cansado. Tomou um caminho que não conhecia para testar a própria autodeterminação. E quando surgiam os primeiros sinais de dia e já se podia ouvir pássaros cantado, ele chegou ao ponto.

Marcou seus dedos no pescoço frágil de alguém que estava no lugar errado, na hora errada. Foi adentrando o espaço e foi aí que ele tomou para si um faca. Esperava encontrar a vitima dormindo, mas não, as coisas não eram assim tão simples. Brigaram, e quando o sol cruzava a linha do horizonte, o coração do outro parou de bater.

Enquanto se limpava, se perguntou se o outro sabia porque tinha morrido. Não, não sabia. Também se perguntou se ele sabia porque tinha matado. Não tinha as palavras certas, mas tinha uma imagem, os olhos cansados daquela pequena tão perfeitamente casados com o destino desastroso e desavisado daquelas balas do 38.

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