segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Éros e Tânatos

Era estranho ouvir os passos no meu apartamento. Passos de alguém que sabia que era esperado, mas eu não me lembrava de ter convidado ninguém. É claro que também não me lembrava do som que passos invasivos fariam, mas não senti nenhum tipo de ameaça. Não levantei para acender a luz, nem procurei nenhuma arma, não havia perigo e não tinha porque perturbar a atmosfera urbana e febril que a luz de mercúrio do poste criava. Por alguns instantes eu quis fumar, como que para invocar algum tipo de proteção. "Ei, não mexa comigo, eu sei que você esta ai e eu sei o que você quer". Por não saber nada, eu tive vergonha de acender o cigarro. Sempre tive vergonha de mentir. Coisa da educação cristã, eu acho.

Os passos se aproximaram, se eu me virasse saberia quem era. Não virei; não virei porque não virei, por que aquela posição era tão confortável e de qualquer maneira não havia risco e portanto não havia motivos. Foi quando senti uma corrente elétrica percorrer a região do meu ombro. Pele sobre pele. Olhei, e talvez pela luz, talvez porque meus olhos estivessem ofuscados, não reconheci. Mas conheci e era o meu mais novo amor.

Nos beijamos e eu pude tocar com as mãos o rosto. Senti uma e outra cicatriz; era humano. Língua sobre língua, numa espécie de fluido quente que vai penetrando no corpo pelo orifício mais sincero. E era, além disso, porque tinha tanta delicadeza e inocência, e era tão verdadeiramente sincero e terno.

Então eu pude sentir a nuca, e pude pressionar a sua cabeça sobre a minha, pude sentir o seu pescoço entre meus dedos e foi quase como se eu estivesse me afogando e agarrasse firmemente aquele salva-vidas.

Nos beijávamos de olhos fechados. Por pura convenção. E então, para guardar aquele rosto, para identificá-lo, abri os olhos. E fiquei olhando aquela figura desconhecida e completamente entregue. Tanta concentração em mim e tanta abdicação. Passei os dedos pela pele do seu rosto e talvez tenha dado a entender, sem querer que tinha quebrado uma convenção. Acabou abrindo os olhos também e nos encaramos. Nos beijávamos e nos víamos nos olhos opostos. E foi como se alguma coisa me absorvesse.

Ainda tínhamos roupas. Nossas mãos passavam por entre os panos e íamos conhecendo as varias peles que um ser humano pode ter. E meu corpo respondia a cada toque, com um tremor, uma contração, e risos também porque aquilo soava meio leve. E foi nessa leveza que eu vi a sua silhueta se despir contra a luz avermelhada. E senti com os olhos o convite para tocar. Porque quase todos os corpos são bonitos mas somente alguns convidam ao toque. Deixei que minhas roupas se dispersassem, e tive aquela sensação tão humana de pele sobre pele. De novo e para sempre, já que esse parece ser o tempo que nunca passa. Como na infância, quando os dias parecem ter horas demais. E era esse o gosto que a boca tinha, uma grande sensação de infância, sem mundo nem amarras nem medos.

Peregrinando sobre cada curva daquele outro ser fui identificando pedaços da minha vida. Entre as mãos e as falanges dos dedos encontrei o gosto da minha primeira aventura; entre as coxas o eterno sabor do proibido e do violado; perto do coração, o cheiro do choro consolado. Provei todos os centímetros daquela pele, revistei os sentimentos mais marcados na minha própria pele. E não havia exaustão entre nós mas paramos. Tocamos os cabelos e ficamos abraçados, pele sobre pele, olhos juntos, profundo. Vi seu rosto relaxar e permitir que o sono entrasse. Deixei que meus sonhos entrassem no ritmo da sua respiração. Paz.

Foi quando bateram a porta. Saindo do ritmo, porque eu ainda não tinha adormecido, me lembrei. Claro, era hoje o dia que viriam me matar. Estava combinado, era tão obvio. Dessa vez não tive vergonha de acender o cigarro. Fiz uma cortina de fumaça por todo apartamento, mas abri a porta sem medo. Sem roupas também mas isso não provocou qualquer tipo de candura no assassino. Ele entrou e tudo era de repente tão claro. Porque o amor anda junto com a morte. O amor precede a morte. E o assassino era o assassino mas meu novo amor podia ser tanta coisa... Minha vida toda, todos os cheiros e gostos. Ou talvez só um, porque no fim só existe um cheio e um gosto, que é sempre o do convite.

Pedi para que não usasse faca; não me agradava a idéia de sangrar e ter a pele lacerada. É claro que lutaria pela minha vida, mas não sentiria culpa nenhuma se perdesse. O amor antecede a morte, o amor se levanta e vai embora com a morte, como se a vida o tirasse para dançar num baile muito longínquo. Acho que foi uma pistola.

É estranho, como uma lembrança que termina em assassinato possa me ser tão agradável.
Talvez meu novo amor tivesse sido um presente do assassino. É como um daqueles pesadelos que se acorda com um alivio tão grande por tudo ser um sonho, que nem se lembra mais de todo o medo que foi sentido. Eu dancei com a morte e transei com vida, me afoguei naqueles lábios com gosto de infância, e ah..., quanta ânsia, mas quanta ânsia de me suicidar naquele corpo de nome secreto e origem desconhecida. No tom vermelho da madrugada, que é quase uma vocação, porque nem todo fim significa um recomeço.

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